A seca na Amazônia e o ciclone no Sul não são fenômenos inéditos, entretanto, eles são cada vez mais frequentes e intensos
A casa de madeira do agricultor Delmar Rodrigues, nas vizinhanças de Manaus, descansa sobre palafitas, que, no início de outubro, pareciam ter pouca serventia. O liso do Solimões fica logo à porta em época de cheia do rio, mas, naquele momento, o quadro deu para estarrecer toda a gente: como as chuvas sumiram a partir de agosto, Delmar tinha de vencer mais de 150 metros de barro e lama para encontrar a água que costuma ser quintal.
“Estamos acostumados com as cheias, com a vazante, acontece todo ano. Mas dessa vez foi diferente”, disse ele à Globo Rural. O milho cresceu pouco, as cebolas estavam pequenas e a lavoura de melancia foi abandonada antes de as plantas darem frutos. “Foi rápido. E foi forte.”
Eis a força em números: em setembro, a superfície de água dos municípios amazonenses era de 3,5 milhões de hectares, uma área quase 30% menor que a de um ano antes. A estranheza dessa verdade contrastava com o que se viu semanas antes no outro extremo do país.
No início de setembro, a formação de um novo ciclone extratropical – um fenômeno relativamente comum, com ventos que muitas vezes nem sequer chegam à costa – desencadeou uma enchente no Rio Grande do Sul que destruiu casas e lavouras e causou a morte de mais de 50 pessoas.
Os prejuízos para o agro passaram de R$ 1 bilhão, segundo a Confederação Nacional dos Municípios (CMN). “Não foi uma enchente, foi uma catástrofe”, descreveu Milton Stahl dos Santos, diretor da Granja Avícola Bom Frango, em Venâncio Aires, a 130 quilômetros de Porto Alegre. Dentro do frigorífico, contou o empresário, as águas chegaram a 1,20 metro acima do nível do solo.
Seca na Amazônia e ciclone no Sul não são fenômenos inéditos. O que diferencia o quadro atual do que se via no passado, entretanto, é que esses problemas são cada vez mais frequentes e intensos. Uma onda de frio, ou mesmo uma série delas, não prova a inexistência do aquecimento global. Na verdade, uma das consequências do aumento da temperatura do planeta é a intensificação dos extremos climáticos: ora o castigo chega com uma seca prolongada e severa, ora com chuvas que não estiam.
Dito de outra forma, o clima “normal” é, hoje, artigo cada vez mais raro. “Isso significa que a atividade agropecuária está sempre sob efeito adverso, o que é bastante desafiador para os produtores”, afirma Natália Fernandes, coordenadora do Núcleo de Inteligência de Mercado da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA). Na declaração, a especialista fez menção específica ao El Niño e ao La Niña, fenômenos naturais que também têm agido com recorrência inédita.
“No Sul, já há casos de plantio de soja que ocorre em áreas de alto risco climático. As perdas dos últimos anos demonstram isso” — Leila Harfuch, sócia da consultoria Agroicon
Nos últimos tempos, o intervalo mais longo sem influência de um dos dois foi o que se estendeu de 2012 a 2014. Depois disso, um sucedeu ao outro praticamente sem interrupções. No momento, o El Niño está em ação, depois de três anos consecutivos de La Niña. Em anos de El Niño, as temperaturas do Oceano Pacífico sobem 0,5°C, em média, o que muda as condições climáticas em diferentes partes do mundo.
No Brasil, a região Sul costuma ter mais chuvas nessas ocasiões. No atual estágio da temporada 2023/2024, o excesso de umidade no Sul tem afetado as lavouras de trigo e o plantio do arroz. Ele pode, além disso, prejudicar a safra de soja em diversas regiões do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina. “Algumas áreas de milho do Rio Grande do Sul têm tido períodos de sol, que favorecem as lavouras, mas em algumas áreas pode ser necessário reaplicar a adubação”, afirma Desirée Brandt, meteorologista da Nottus.
As chuvas também caíram com força no Paraná, ainda que de maneira mais espaçada, o que permite o avanço da soja e do milho. A primavera sob influência do El Niño mantém chuvas mal distribuídas nas regiões Sudeste e Centro-Oeste do país. Agora, a expectativa é que a chuva enfim volte a dar as caras, mas de forma localizada. “Isso exige do produtor um avanço com cautela, plantando conforme a chuva acontece”, alerta a especialista.
Já nas regiões Norte e Nordeste, as chuvas devem chegar em algum momento ao Pará e à área conhecida como Matopiba (Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia). Ainda assim, em volume inferior à média histórica, ressalva a meteorologista. Em anos em que o fenômeno é de intensidade forte ou muito forte, os baixos níveis de umidade afetam a produtividade de soja e milho no Matopiba.
Foi o que ocorreu no “super El Niño” que ocorreu entre 2015 e 2016, quando as temperaturas do Pacífico chegaram a subir 3°C – e o rendimento das lavouras da região caiu mais de 30%. O levantamento da CNA mostra, em linhas gerais, que tanto o volume de produção quanto o rendimento caem quando o El Niño age. E isso não se restringe à agricultura.
No caso da pecuária leiteira, as altas temperaturas e a umidade afetam as vacas em lactação, o que pode causar perda de produção de até 20% em animais com média produtiva de 30 litros de leite por dia. O resultado disso, nos cálculos da entidade, é uma queda de quase 25% da margem líquida da atividade.
Em contrapartida, a água mais quente tende a favorecer a piscicultura, e a produtividade da cana-de-açúcar costuma crescer. Desde 2013, os problemas climáticos já causaram prejuízos de mais de R$ 300 bilhões à agropecuária brasileira, segundo a Confederação Nacional dos Municípios. Nos primeiros nove meses deste ano, as perdas somaram R$ 24,6 bilhões na agricultura e R$ 9,1 bilhões na pecuária.
Os extremos climáticos não afetam somente a atividade rural, é claro, nem são exclusividade brasileira. Segundo um estudo publicado em setembro pela revista científica Nature, os 185 eventos meteorológicos extremos que estão na base de dados da Organização Meteorológica Mundial afetaram 1,4 bilhão de pessoas no mundo.
As perdas associadas diretamente às alterações climáticas, continua o estudo, chegam a US$ 143 bilhões anuais em média – o equivalente, hoje, a mais de R$ 700 bilhões, ou R$ 80 milhões por hora. Entram na conta as perdas materiais, chamadas no estudo de “danos monetários diretos”, e as mortes decorrentes desses episódios. Elas representam 63% do valor total, estimado com base em um conceito conhecido como Valor Estatístico de uma Vida (ou, em inglês, “Value of a Statistical Life”).
Se maior o intervalo da análise, o número de mortes fica ainda mais evidente. A Organização Meteorológica Mundial, agência que integra a Organização das Nações Unidas (ONU), informa que, no mundo, as perdas causadas por desastres ambientais aumentaram sete vezes desde 1970.
“Embora parte dessa alta deva-se ao aumento das notificações de danos provocados por catástrofes, ao crescimento populacional e aos movimentos migratórios em direção a áreas urbanas e costeiras mais expostas [aos eventos climáticos], pode-se atribuir às mudanças do clima uma parcela do aumento [das perdas]”, escreveram os autores do estudo publicado na Nature, que cita o levantamento da agência.
“Estamos acostumados com as cheias, com a vazante, acontece todo ano. Mas dessa vez foi rápido. E foi forte” — Delmar Rodrigues, agricultor
Nessa era de extremos, o que se pode fazer pelo agro? “A crise climática nos coloca em um momento crítico, em que precisamos muito de pesquisa agropecuária com recursos públicos. Existem vazios que a pesquisa privada não está ocupando”, pontuou o agropecuarista Pedro de Camargo Neto, doutor em engenharia, ex-presidente de entidades de classe e ex-secretário de Produção e Comércio do Ministério da Agricultura (2001-2022).
“Precisamos de novas variedades, mais resistentes a seca e calor. A pesquisa privada atua com soja e milho, mas, para gramíneas, por exemplo, que ocupam a maior parte da área de plantio no Brasil, se não for a Embrapa, com pesquisa, edição gênica, não teremos novas variedades.” Esses apontamentos estão no relatório que Camargo Neto e um grupo de notáveis formularam para orientar a linha de trabalho da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária nos próximos 50 anos.
Projeções da estatal sugerem que, até 2040, as mudanças no clima devem forçar o deslocamento de culturas e reduzir áreas aptas ao plantio de alguns produtos. Soja, milho, arroz e trigo, por exemplo, que são originários de países de clima temperado, podem fazer parte dessa redistribuição.
“Na região Sul, pode-se dizer que já há casos de plantio de soja em áreas que são de alto risco climático. As perdas dos últimos anos demonstram isso”, afirma Leila Harfuch, sócia da Agroicone.
“A crise climática nos coloca em um momento crítico. É preciso investimento público em pesquisa agropecuária” — Pedro de Camargo Neto, produtor rural e doutor em engenharia
O feito deveu-se não à crise climática, é verdade, mas sim à diretriz da expansão demográfica para essa região que vigorou a partir da década de 1970. Seja como for, ainda que o estopim tenha sido outro, colheu-se revolução com esse feito.
“Não se desenvolveu a soja para o Centro-Oeste com o olhar das mudanças climáticas, mas essa é uma forma de adaptação que serve de modelo para o momento atual”, diz Giampaolo Pellegrino, coordenador do Comitê de Mudanças Climáticas da Embrapa.
O esquenta e esfria do clima embrulhou tudo. O que se precisa agora é, também, coragem.